segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Primado da Vida, O



Frei Betto
Doutrina e teologia da Igreja católica conheceram consideráveis avanços neste século, sobretudo a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965). Outrora, o planejamento familiar dependia da abstinência sexual; o carinho entre o casal era considerado pecado; os protestantes e os judeus, abominados; o ecumenismo, impensável; o latim, obrigatório nas missas; a batina, única indumentária social do padre.
Hoje, celebra-se em língua vernácula; o papa reúne-se em Assis com representantes de diversas religiões e visita a sinagoga de Roma; deixa-se fotografar em trajes esportivos, ao esquiar nas férias; e pede perdão pelo anti-semitismo da Igreja, pelos erros da Inquisição, pela condenação de Galileu e das teorias de Darwin.
Mesmo a teologia da libertação, encarada com suspeita na década de 80, incorpora-se agora aos discursos papais. Basta reler seus pronunciamentos em Cuba (1978) e no México (1979), condenando o neoliberalismo e a globalização, bem como seus insistentes apelos em prol da reforma agrária e da suspensão do pagamento da dívida externa.
A cidadela inexpugnável é, ainda, a teologia moral. Sobretudo o capítulo concernente à moral sexual, que proíbe relações sexuais sem finalidade procriatória; condena o homossexualismo; impede os casais de segundas núpcias, exceto na viuvez, de acesso aos sacramentos; e veta o uso de preservativos, malgrado a Aids ter tirado a vida, em 1999, de cerca de 4 milhões de pessoas em todo o mundo.
As autoridades da Igreja católica, felizmente, demonstram maior tolerância nesse mundo pluralista pós-moderno, em que não se pode pretender que a moral preceituada à instituição seja imposta ao conjunto da sociedade. Talvez isso explique o fato de João Paulo II, em sua última visita ao Rio, ter acolhido no altar cantores que já passaram por vários casamentos, e alguns prelados sentirem-se à vontade entre figuras públicas que estão longe de ser exemplo de virtudes na esfera conjugal.
Frente à ameaça da Aids, o que o padre Valeriano Paitoni declarou ao repórter Armando Antenore, na Folha (2/7), em nada destoa do que antes dissera dom Paulo Evaristo Arns, que o preservativo é "um mau menor".
O magistério eclesiástico sabe que é direito e dever dos teólogos ­ pois é este o carisma deles - debater todas as questões concernentes à vida de fé, e que "alguns documentos magisteriais não estão livres de deficiências. Os pastores nem sempre perceberam todos os aspectos e todas as complexidades de algumas questões" (Congregação para a Doutrina da Fé, 1990).
A questão sexual à luz das fontes da Revelação cristã situa-se num contexto mais amplo, que engloba desde o papel da mulher na Igreja, ainda hoje impedida de acesso ao sacramento da ordem, até o fim do celibato obrigatório para os padres seculares, bem como a volta ao ministério dos que se encontram casados. Como uma lente que se abre progressivamente, tais temas devem ser tratados com menos preconceito e mais estudos bíblicos, menos autoritarismo e mais diálogo com a comunidade dos fiéis, como fez dom Cláudio Hummes, ao receber, semana passada, entidades solidárias aos portadores do vírus HIV.
A tradição ou história da Igreja é uma boa mestra quando não se quer repetir equívocos. Os irmãos Cirilo e Metódio evangelizaram a Morávia, no século IX. Criaram o alfabeto cirílico, base do russo atual. Traduziram para o eslavo os textos bíblicos e litúrgicos. Os bispos alemães protestaram, alegando que Deus só podia ser louvado nas três línguas da cruz: hebraico, latim e grego. Cirilo morreu em 869. Metódio foi preso por ordem dos bispos alemães. O papa João VIII negociou sua libertação em troca do latim na liturgia. Metódio recusou-se a abrir mão do eslavo. Dois anos depois, o papa cedeu e, séculos adiante, João Paulo II exaltaria os dois irmãos na encíclica Slavorum apostoli.
Condenada pela Igreja, ela foi queimada viva, a 30 de maio de 1431, como "herege, relapsa, apóstata e idólatra". Camponesa e analfabeta, tinha 19 anos, vestia-se de homem e andava armada. Canonizada em 1920, hoje é venerada nos altares como santa Joana D´Arc.
Na encíclica Mirari vos, de 1832, Gregório XVI condenou o mundo moderno, as liberdades de consciência e de imprensa, e a separação entre a Igreja e o Estado. Em 1864, o Syllabus de Pio IX reafirmava a sentença, repudiando proposições como "o romano pontífice pode e deve reconciliar-se e chegar a um acordo com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna" (DS 2980).
Continua vigente o decreto do Santo Ofício de 1949, assinado por Pio XII e confirmado por João XXIII em 1959, pelo qual todos os católicos que votarem ou se filiarem a partidos comunistas, escreverem livros ou artigos filocomunistas estão excluídos dos sacramentos. "Ninguém pode, ao mesmo tempo, ser bom católico e socialista verdadeiro" (Pio XI).
Hoje, João Paulo II admite que "o socialismo continha sementes de verdade", visita Cuba, utiliza todos os recursos da moderna tecnologia da mídia, mostra-se encantado com a Internet, louva os progressos científicos e técnicos, e percorre o mundo em viagens aéreas. "Eppur si muove", malgrado o decreto de 1616, do Santo Ofício, condenando aqueles que diziam que a Terra se move. Não só o nosso planeta, mas também os costumes e a hermenêutica dos fundamentos da doutrina cristã.
Jesus não condenou a mulher adúltera (João 7), nem a samaritana que estava no sexto marido (João 4), nem deixou de escolher Pedro para chefiar o grupo apostólico porque ele era casado (Marcos 1). Ao contrário, cobriu-os de compaixão, revelando-lhes o coração amoroso de Deus.
É hora de o magistério católico se perguntar se o preservativo pode ser descartado, quando se sabe que até mulheres casadas são infectadas por seus maridos pelo vírus da Aids. O preceito evangélico da vida como bem maior de Deus e o princípio tomista da legítima defesa não se aplicariam a tal circunstância?

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